segunda-feira, 5 de agosto de 2024

Água Funda

Sinopse: Entrelaçando diferentes tempos e personagens, inserido no universo de uma comunidade rural na Serra da Mantiqueira, Ruth Guimarães construiu uma prosa ágil e fluída, permeada de ditos populares e causos marcados pela superstição e pelo fatalismo, que antecipa em certos aspectos o realismo mágico de Juan Rulfo e Gabriel García Márquez. É o caso das histórias de Sinhá Carolina, dona da Fazenda Nossa Senhora dos Olhos d'Água, e do casal Joca e Curiango, trabalhadores locais, num arco temporal que vai da época da escravização até os anos 1930. Como afirma o narrador do livro: "A gente passa nesta vida como canoa em água funda. Passa. A água bole um pouco. E depois não fica mais nada".

No mês de abril/2024 recebi da minha assinatura da TAG Curadoria a indicação do rapper Emicida o livro Água Funda da escritora paulista Ruth Guimarães. O mimo foi um tarô literário.

Logo de início o leitor é convidado a saber como era antigamente, o que ficou igual, mas principalmente o que era diferente, e assim a primeira personagem da narrativa aparece: Sinhá Carolina.

Ter dor de barriga é uma coisa. Pensar na dor de barriga alheia é outra coisa muito diferente. Sempre parece que a dos outros dói menos.


Com a Sinhá vem o tempo da escravatura e as relações hipócritas e exploradoras dos que comandavam as terras, pois sustentar uma sociedade mimada e egoísta exige muito suor e esforço dos que devem servir.

Mas com a fazenda virando fábrica, vamos conhecer a história de Joca e da bonita Curiango, que com eles trazem as mudanças ao longo do tempo e diferentes personagens que vão completando não apenas a vida nesta sociedade, como também as diferenças sociais e crenças populares, que tão um toque de fantasia na narrativa.


A escrita de Ruth Guimarães

A escritora brasileira Ruth Guimarães nasceu em Cachoeira Paulista em junho de 1920 e nos deixou em maio de 2014. Publicou 51 livros entre contos, crônicas, traduções, ensaios folclóricos e romances, entre este último Água funda.

Em Água funda ela utiliza a narrativa em terceira pessoa. A escritora paulista nos convida a entrar em um bate-papo para compartilhar vários acontecimentos que iniciam em Vale da Paraíba, local que já proporcionou todos os desejos de uma sinhá mimada até um solo que não produz mais nada e gera decadência econômica para os que ficaram.

Os olhos deles tinham outro poder, que os de nós, pecadores não tinham. Viam mais. Criança e cachorro nunca se enganam.


O livro pulicado em 1946 tem uma escrita fluída, que entre fatos concretos e crenças dos que ali vivem, conseguem colocar o leitor em dia com os principais causos, casos e acontecimentos da comunidade local. 

Mas é também uma leitura que exige atenção, pois como em uma boa conversa em que se troca fofocas da vizinhança, os assuntos vão e voltam, o que pode provocar confusão e dúvidas em alguns momentos.

Porque o homem, por mais ignorante que seja, por mais cego, por mais bruto, gosta de ser tratado como gente.


Um livro que mistura ficção e um pouco da própria história do Brasil, mais especificamente do estado de São Paulo, ao mesmo tempo que nos apresenta uma escritora brasileira que talvez passe batido por vários leitores.


O que eu achei de Água funda

A leitura me despertou lembranças de uma querida vizinha de uma das minhas moradias anteriores que estava sempre por dentro das novidades do bairro. Isto se deve ao fato que durante a leitura inteira eu imaginei várias senhoras sentadas ao redor de uma fogueira ou apoiadas nas janelas de suas casas, todas bastante próximas, lembrando de fatos ocorridos na sua volta, com mais ênfase na vida dos personagens cujo o destino não foi tão afortunado.

Pois durante a leitura não existe um aprofundamento em relação ao envolvidos, como brincou a minha mãe: a narrativa em alguns momentos lembra mais uma água rasa.

Já morreu e isso não teve importância. Quem morre não faz falta, porque quem fica se arranja.


Mas ao mesmo tempo, até pela época em que foi escrita, é interessante a abordagem utilizada em relação as mudanças nas formas de se trabalhar, com direito a golpes que continuam a serem aplicados nos dias atuais em trabalhadores de regiões mais afastadas que recebem ofertas tentadoras, a questão das doenças mentais - outro assunto discutido e estudado nos dias de hoje -, além do declínio dos donos de escravos e as diferenças sociais que gritam com mais ou menos força, variando conforme ele se afastam da sua comunidade.

Então acredito que apesar do ar de conversa de vizinhança não aparentar ser tão profunda, a comunidade deste vale pode sim trazer excelentes reflexões não só sobre o passado, mas também sobre o presente, já que em muitas situações não há muitas evoluções nos dias de hoje.

As mágoas velhas, que a gente guardou, voltam e pegam a latejar de novo, nessas noites meio claras, meio escuras, de céu limpo.


No geral eu gostei de Água funda, a forma como a narrativa é ambientada me transportou para a roda de conversa, estimulou o meu lado curioso, e me fez ter interesse em suas crenças, estimulando uma discussão entre o meu lado que gosta de literatura fantástica e o meu lado mais cético.

Ficando a dica para quem gosta de livros que contam um pouco da história e cultura brasileira, quer ler mais livros escritos por mulheres e naturalmente, para quem simplesmente quer ler.


Água funda
Ruth Guimarães
TAG - Editora 34
2024 - 199 páginas
Publicado originalmente em 1946


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