quarta-feira, 9 de outubro de 2024

Línguas



Sinopse: Nápoles, anos do pós-guerra. Um menino passa horas na janela do apartamento fantasiando ser poeta. No prédio da frente, uma menina se arrisca dançando no parapeito da sacada. Apaixonado, um menino destemido pode se lançar a proezas extremas, como duelos sangrentos e até mesmo falar italiano (e não mais napolitano, a língua da família e da intimidade). Papel fundamental na sua vida tem a avó — que nutre por ele uma adoração desmesurada. Há também um amigo, o arrojado Lello, igualmente fascinado pela menina. Seguindo uma teia de transformações, Línguas conta a história desses três personagens com destinos que ficam inextricavelmente unidos para sempre.

No mês de agosto/24 recebi pela minha assinatura da TAG Curadoria a indicação da atriz Maria Bopp o livro Línguas do escritor italiano Domenico Starnone. O mimo foi um caderno pequenino para anotações.



Mimi devia ter oito ou nove anos de idade quando, após ouvir a fábula de Orfeu, passou a buscar nas redondezas de casa em Nápoles a fossa dos mortos. O motivo era resgatar a menina que foi o seu primeiro amor.

Entre os oito e os nove anos de idade, decidi encontrar a fossa dos mortos.


Sem saber o seu nome, ele a chamava de milanesa, já que o seu amigo Lello dizia que ela havia vindo de Milão, norte da Itália onde não se usava dialetos, e sim o italiano. A paixão à primeira vista foi quando viu a menina dançar na sacada do apartamento à frente do seu. 

O encanto gerou duelo entre os amigos e uma eterna lembrança em Mimi, que cresce com a sombra de milanesa em seus relacionamentos. Assim como sua avó, que após a perda do marido, vive como uma espécie de empregada da filha e seus poucos sorrisos e gentileza são reservados ao seu neto favorito Mimi.

Só falava sem freios com ela, que com os outros era muda que nem eu: guardava as palavras na cabeça e as usava no máximo comigo.


Mas é na vida adulta que Mimi irá estudar a própria língua, e começar a entender o poder que ela exerce não apenas na cultura de um povo, mas também em sua autoestima e memórias.


A escrita de Domenico Starnone

O professor e jornalista Domenico Starnone publicou seu primeiro livro aos 42 anos e hoje é considerado um dos autores contemporâneos mais importante da Itália. Seus livros tem como característica a escrita elegante e a profundidade psicológica de seus personagens.

Em Línguas o autor Domenico Starnone convida o leitor a conhecer um pouco da sua cidade - Nápoles - e de sua própria infância, já que a narrativa possui um toque de autobiografia.

Era de domínio público que, quando fazia sol, eu a espiava abobalhado da janela ou passava muito tempo em frente ao portão dela.


Starnone utiliza-se principalmente de três bases para costurar sua história. Começando pela família aqui representada pela avó, figura com a qual os diálogos ocorrem tanto na infância quanto na vida adulta.

A segunda base é a paixão idealizada e impossível pela milanesa, um amor platônico infantil que beira a obsessão. 

Havia décadas não esperava mais nada da vida, nem sequer um docinho, mas a partir de mim ela começoulogo a extrair doçuras de todo tipo.


Completando a pirâmide, está o amigo Lello, o garoto que embarca na imaginação de Mimi ao mesmo tempo que é um rival em todas as disputas.

E são estas três bases que propiciam o escritor discutir sobre a linguagem, não só como forma de escrita, mas também como forma de construir a própria identidade e até mesmo diferença social. Tendo referências fortes ao dialeto local de Nápoles, ao qual Mimi sempre compara ao italiano falado no norte da Itália, aqui representado por Milão.

Eu nem lhe agradeci, eram gentilezas contadas, ela mesma não saberia evitá-las.


E como ele fala em identidade, seria impossível não entrar as memórias, principalmente de sua avó, que perdeu o marido ainda jovem, e como um espelho do neto, vive deste amor do passado, cujas histórias ganham novas versões e ganham em Mimi um espectador atento.

Tudo em uma narrativa em primeira pessoa, onde o personagem mistura os próprios sentimentos com a linguagem, as vezes de forma mais técnica, as vezes de forma poética, e na maioria das vezes em um estilo mais fluído, em um livro curto e relativamente rápido de ler.


O que eu achei de Línguas

Na minha humilde opinião a avó é a grande personagem da história. Seja sendo a criada da família da própria filha, seja contando suas histórias e influenciando a imaginação do neto favorito. O fato é que ela inicialmente não é tão velha - está na casa dos cinquenta anos - mas a beleza do passado foi substituída pela tristeza e até uma certa apatia.

O que me fez pensar muitas vezes como foi a sua história? Como ela conseguiu sozinha e jovem criar duas crianças pequenas? E por que ela aceita ser uma sombra na própria família?

Entretanto, não tinha dia em que eu não desejasse caminhar por uma estradinha solitária e, sem nenhum motivo evidente, dar socos e pontapés no ar, me abandonando ao choro nem que fosse por um minuto.


Sobre o Mimi, a verdade é que cada vez que ele falava milanesa, no lugar de imaginar Milão, minha mente era assombrada por um belo bife à milanesa, o que me provocou certa fome durante a leitura.

E sua vergonha da avó, assim como a não retribuição de tanto amor, já que avó inclusive assumia a culpa por suas artes infantis, me apertavam o coração, não havia um beijo, nem um muito obrigado. Seria típico de criança, se ele não conseguisse expressar tamanho sentimento pela menina da janela a frente.

Aprendi faz tempo que até as pessoas que nos amam se esforçam para se retirar de cena e deixar espaço às nossas manias de centralidade.


Menina cuja morte - e isso não é spoiler, já que é revelado na primeira página -, se tornou uma assombração em sua vida, quase como um ponto de referência para os seus relacionamentos românticos.

Em relação a parte da língua, questão da grafia e suas mudanças ao longo dos anos, possuem toda uma explicação, que pode ser um ponto de atenção ou curiosidade para quem gosta do estudo da linguagem, confesso que não me chamaram tanto a atenção.

O momento, na memória, é ocupado apenas pela fotografia, um retângulo de papelão amarronzado com numerosas marcas de rachaduras brancas na imagem.


Exceto que me fizeram pensar que o tema principal da história é na verdade a morte. Temos a morte do amor - seja o vivido, seja o platônico -, a morte de alguns termos da linguagem, a morte de relações, a morte da infância, a morte do nosso eu de ontem. Nem mesmo a memória consegue a imortalidade, já que a mesma também vai se apagando aos poucos.

Confesso que no geral achei a leitura mais ou menos, algumas vezes achei bobinha, outras vezes um pouco enfadonha e em alguns momentos me envolvi. Mas se não fosse o bife à milanesa que criou uma associação permanente, talvez o livro caísse no esquecimento.

Era como se eu perdesse as pernas, senti que elas estavam indo e me deixando apenas o tronco e a cabeça.


Mas isso não significa que a experiência será igual para você, pois o que desencanta alguns apaixona a outros. Então você gosta de histórias que acompanham da infância a vida adulta, primeiros amores inesquecíveis, o que envolve linguagem, narrativas que envolvem memórias, talvez a leitura tenha outro significado pra ti.

Ficando a dica para quem quiser se aventurar e voltar aqui para deixar a sua opinião nos comentários.


Línguas
Vita mortale e immortale ella bambina di Milano
Domenico Starnone
Tradução: Maurício Santana Dias
TAG - todavia
2024 - 141 páginas
Publicado originalmente em 2021

terça-feira, 1 de outubro de 2024

O labirinto dos espíritos



Sinopse: Em O labirinto dos espíritos, Zafón nos conduz ao emocionante desfecho da série que começou com A sombra do vento e impactou leitores por todo o mundo. Personagens novos e antigos povoam as páginas, se entrelaçando em uma despedida grandiosa.

O IV livro da série O cemitério dos livros esquecidos fecha essa tetralogia que mistura a história de Barcelona com uma homenagem aos escritores e livros.



Ele inicia em Madrid nos anos de 1950 e quem guia o leitor é Alicia Gris, uma jovem mulher que ainda na infância sobreviveu aos bombardeiros que arrasaram Barcelona durante a guerra e lhe deixaram dolorosas cicatrizes no corpo e na alma.

Ele fechou os olhos e, um segundo depois, emergiu na vida constatando que o simples ato de respirar era a experiência mais maravilhosa que tivera em toda a sua existência. 


Investigadora sagaz de uma equipe que trabalha nas sombras, ela recebe a missão de localizar o ministro Mauricio Valls, que desapareceu junto com o seu guarda-costas de confiança. As pistas a levam de volta para casa, isto é, Barcelona, onde ela vai se aproximar da família Sempere e reecontrar o homem que ajudou a salvar sua vida, Fermín Romero.

Na família, apesar da paz aparentemente reinar, Daniel não consegue ser totalmente feliz , o enigma de sua mãe Isabella é algo permanentemente presente em sua mente, algo que nem Bea nem Juliàn conseguem distraí-lo. E o fato de tentarem protege-lo o irrita ainda mais.

A caça, a caça de verdade, é um duelo entre iguais. A gente não sabe quem realmente é até derramar sangue.


E conforme as peças são encontradas por Alicia, mais fatos obscuros começam a vir à tona, e o conhecimento destes fatos se torna um fardo perigoso para os que carregam, recordando ao leitor o que realmente tornava a cidade sombria naquela época.

Com o retorno dos personagens dos três primeiros livros e a chegada de novos, a narrativa é um verdadeiro convite a desvendar em definitivo os enigmas tão bem distribuídos por Zafón, com suas alegrias e tristezas, podendo emocionar os fãs da série.


A escrita de Carlos Ruiz Zafón

Nascido em Barcelona, Carlos Ruiz Zafón foi um renomado escritor e roteirista. Conhecido por sua habilidade em misturar elementos de mistério e romance em suas obras de ficção gótica, ele ganhou destaque internacional justamente com seu romance A Sombra do Vento (2001), livro que abre a série O cemitério dos livros esquecidos.

Zafón faleceu em 2020 - o que aperta o meu coração até os dias de hoje, já que ele está na minha lista de autores favoritos -  e seus livros foram traduzidos para mais de 40 idiomas, tendo vendido milhares de exemplares pelo mundo.

Uma lenda é uma mentira concebida para explicar uma verdade universal. Os lugares onde a mentira e a miragem envenenam a terra são particularmente férteis para o seu cultivo.


Especificamente sobre O labirinto dos espíritos, o escritor optou por uma narrativa em terceira pessoa, o que permite ao leitor uma visão ampla e detalhada dos personagens e da trama, além de sempre especificar em cada nova parte a cidade e o ano que os fatos estão ocorrendo. 

O livro é interligado com os outros volumes da série O Cemitério dos Livros Esquecidos, mas como ocorre nos anteriores, é possível ler o mesmo de forma independente, mesmo eu considerando isso um pecado já que além dos personagens, são os detalhes que fortalecem os laços entre os quatro livros.

Acho surpreendente como sempre procuramos no presente ou no futuro as respostas que estão no passado.


Como ocorreu nos três livros anteriores da série, a narrativa fluída de Zafón se destaca pela sua riqueza descritiva e pela construção de uma atmosfera densa e envolvente, que faz o leitor caminhar por uma Barcelona sombria.

E isto é complementado ao alternar diferentes tempos e pontos de vista, permitindo que a história se desdobre de maneira complexa ao mesmo tempo que se aprofunda nos personagens principais, revelando aos poucos todos os segredos e mistérios que foram guardados ao longo dos quatro livros da trama.

Você decide se quer viver ou apodrecer pouco a pouco, como deixou acontecer com tantos inocentes.


Além disso a intertextualidade e as referências literárias utilizadas ao longo da história são marcantes, refletindo a paixão do escritor espanhol pela literatura e encantando a todos que se entregam a leitura desta série.

Tudo isso utilizando uma linguagem fluída, que convida virar mais uma página, ler mais um capítulo e se apaixonar pela série.


O que eu achei de O labirinto dos espíritos

Foi emocionante realizar a leitura de O labirinto dos espíritos, uma história que homenageia os escritores e os livros, fechando de forma redonda esta série que tanto adoro e fiquei com vontade de reler ao fechar a contracapa.

Como nos três primeiros livros, nos deparamos com a força da literatura em um período que escureceu a hoje iluminada Barcelona, tendo como base a história de um país e todas as injustiças que ocorreram durante a época retratada.

Antes de sair ainda deu uma última conferida no espelho do saguão e se aprovou. Você partiria o próprio coração, pensou. Se tivesse um.


Tornando o livro ao mesmo tempo maravilhoso e doloroso, pois enquanto reforça a importância da literatura, nos lembra da destruição que uma ditadura faz não apenas nos livros, mas também na vida das pessoas, principalmente das crianças atingidas diretamente, cujas vidas são alteradas de forma definitiva.

Gostei da ampliação de locais que a narrativa trouxe, incluindo Madrid e Paris no caminho de alguns personagens. E já me peguei pensando em retornar as cidades só para fazer o roteiro de O labirinto dos espíritos. Pois sim, eu fiquei tão fã de A sombra do vento que quando fui a cidade de Barcelona passei por diversos dos pontos citados no livro, incluindo a rua onde fica a Livraria Sempere.

Você não mente para as pessoas; elas sozinhas se mentem. Um bom mentiroso dá aos bobos o que eles querem ouvir. Esse é o segredo.


E amei que apesar dos livros se completarem de tal forma que não possuem uma ordem certa , O labirinto dos espíritos fecha todas as pontas que os três primeiros deixaram ao longo do caminho, não deixando o leitor com perguntas, tudo de uma forma natural e fluída.

Aliás, para quem já leu os livros da série, uma dica, o Epílogo de O prisioneiro do Céu é um gancho para O Labirinto dos Espíritos.

As pessoas são como marionetes ou brinquedos de corda, todas têm um mecanismo oculto que permite manipular seus fios e fazê-las ir na direção que se deseja.


Então sim, eu indico, recomendo e saliento: quem ama literatura, quem ama livros, precisa entrar neste Cemitério. A chance de você se apaixonar pela escrita do Zafón e se apegar a família Sempere é muito grande.


O labirinto dos espíritos
El Laberinto de los Espíritus
Carlos Ruiz Zafón
Tradução: Ari Roitman e Paulina Watcht
SUMA
2017 - 679 páginas
Primeira versão publicada originalmente em 2016