quarta-feira, 28 de agosto de 2024

Os vulneráveis



Sinopse: Sigrid Nunez retorna com sua escrita singular para contar uma história ambientada em Nova York nos primeiros dias do confinamento em razão da pandemia de covid. A narradora, escritora com idade suficiente para se qualificar como “vulnerável”, concorda em passar o início da quarentena no apartamento da amiga de uma amiga (presa pelo mesmo motivo em outro estado), para cuidar do papagaio Eureca, desamparado desde o sumiço repentino de outro hóspede, um universitário da Geração Z. O jovem retorna sem avisar, e os dois — ou os três, contando com a ave — tornam-se companheiros de casa, não sem antes atravessar certas tensões. A evolução desses relacionamentos, interpessoais e interespécies, torna-se a base sobre a qual a narrativa se desenrola.

No mês de junho/2024 recebi pela minha assinatura da TAG Curadoria a indicação da escritora brasileira Natalia Timerman, que foi o livro Os vulneráveis da escritora norte-americana Sigrid Nunez. O mimo foi um estojo de algodão.

A história de Os vulneráveis inicia falando sobre a relação da narradora com o mercado do livro misturada com suas memórias até chegar ao funeral de uma amiga de tempos antigos e o reencontro com outras duas.

Todas se despedem cheias de planos para os dias seguintes, mas os mesmos foram interrompidos pela quarentena que parou o planeta em 2020: a pandemia do coronavírus.

Agora sei a verdade: o que importa é o que você experimenta durante a leitura, os estados de sentimento que a história evoca, as questões que surgem em sua mente, muito mais do que os eventos ficcionais descritos.


Sozinha em Nova York, a narradora resolve fazer o favor para uma amiga de uma amiga, e é assim que ela vai parar em um apartamento enorme com a tarefa de cuidar de um papagaio enquanto cede a sua moradia para uma enfermeira que está na linha de frente.

Mas é justamente quando ela fica à vontade e já se sente praticamente dona do lugar que aparece um jovem amigo da dona da casa para dividir o apartamento com ela. Gerando uma mudança na sua rotina e humor.


A escrita de Sigrid Nunez

Nascida em 1951 na cidade de Nova York, a professora de escrita criativa e autora de vários romances, incluindo O amigo com o qual ganhou o National Book Award em 2018, em Os vulneráveis ela usa como pano de fundo um evento que vai ecoar durante anos nas nossas vidas.

Narrado em primeira pessoa, o livro está concentrado nas opiniões, vivências e memórias de uma escritora e professora de uma universidade de Nova York.

Mas isso acontece: escritores que já significaram tudo para nós nem sempre nos emocionam mais da mesma maneira.


E neste novelo que vai sendo puxado por um papagaio, ela irá divagar sobre relações humanas, vulnerabilidades, diferenças geracionais e o próprio enfrentamento da solidão em meio ao caos que transforma uma cidade pulsante em um local silencioso.

Tudo em uma narrativa que mistura poucos diálogos, muitas reflexões e citações literárias, em uma escrita relativamente clara, que as vezes tem um toque poético, mas em outros momentos parece a união de crônicas que viraram um romance. Mas aqui já entra um pouco no tópico de o que eu achei...


O que eu achei de Os vulneráveis

A história começa interessante e inevitavelmente mexe com a memória de todos que viveram os anos iniciais da pandemia de Covid: você está vivendo a sua vida normalmente e de repente tudo fecha, tudo muda, tudo é adiado para uma data desconhecida e todas as certezas viraram dúvidas em questão de dias.

Mas o que segue é uma senhora um tanto reclamona, que em uma página faz inúmeros discursos sobre a humanidade para depois cair em sua própria hipocrisia com uma dose de mesquinhez, sentindo ciúmes de uma casa e de um papagaio que não são seus.

O nome dele era Eureca, uma espécie em miniatura, com cerca de metade do comprimento da maioria dos papagaios de tamanho normal.


A origem dos ciúmes é um jovem nem-nem (nem trabalha, nem estuda) que é vegano, também gosta de fazer discursos sobre a humanidade e o meio ambiente enquanto fuma o seu cigarrinho, mas que vive graças ao cartão de crédito do papai. Fazendo com que os dois personagens, apesar de muito humanos e figurinhas fáceis de se esbarrar no dia-a-dia, não conquistassem o meu coração.

Tornando pra mim o tipo de história que tem potencial, mas o desenrolar não corresponde. Eu particularmente achei a história meio perdida, um misto de crônicas com um diário sem marcação de data.

Não há maneira de viver exceto ferindo os outros - por que o mundo foi feito assim? Como tal mundo poderia ser a criação de um Deus amoroso?


Alternando assim entre um discurso aqui, um ataque de ciúmes ali, pensamentos sobre a escrita de poemas, contos e romances, onde vários autores clássicos são citados.

Entre o que eu gostei da narrativa está a descrição nas mudanças que ocorreram em Nova York, onde muitos saíram da cidade, mas outros muitos ficaram, o que gerou os mais diversos tipos de comportamento.

Quando você não consegue dormir, dizem que uma velha cura para a insônia é contar a si mesmo a história da sua vida.


Também achei interessantes as reflexões sobre a solidão, os laços que se cria, o abandono e naturalmente as consequências que estamos tendo que encarar após fazer gato e sapato do planeta que vivemos.

Resumidamente a narrativa é muito humana, e por isso pode gerar sentimentos diversos conforme as experiências dos leitores. Eu achei mais ou menos, mas você pode amar ou detestar, e voltar aqui para me contar os teus motivos.


Os vulneráveis
The Vulnerables
Sigrid Nunez
Tradução Carla Fortino
TAG - Instante
2024 - 175 páginas
Publicado originalmente em 2023


quinta-feira, 22 de agosto de 2024

Ficção 2006 - 2014



Sinopse: Alejandro Zambra é sem dúvida uma das principais vozes da literatura mundial hoje. Neste volume, estão reunidos de forma inédita Bonsai (2006), A vida privada das árvores (2007), Formas de voltar para casa (2011), Meus documentos (2013) e Múltipla escolha (2014). O livro traz ainda nove histórias dispersas, publicadas em revistas, jornais e antologias. O que há em comum aqui é o tom, cristalino, delicado, com que Zambra conduz suas tramas. "O tom é a sua grande invenção", anotou o argentino Alan Pauls, um dos que fazem parte da irmandade cada vez mais numerosa de admiradores de Alejandro Zambra.

Nesta coletânea que mistura romances mais curtos com histórias que lembram contos, é possível ter uma visão dos temas favoritos do escritor chileno Alejandro Zambra, que nos leva para o Chile dos escritores em diferentes períodos da sua história.

Quem abre é Bonsai, suas 53 páginas são divididas em cinco partes para contar a história do fim do relacionamento de Julio e Emília.

Não se escondia das mulheres, mas da seriedade, pois sabia que a seriedade era tanto ou mais perigosa que as mulheres.


Em A vida privada das árvores a história que ocorre em uma única noite intercala lembranças e pensamentos enquanto Julián cuida da sua enteada Daniela enquanto esperam o retorno da mãe da menina.

Já Formas de voltar para casa faz um vai e vem entre presente e os anos 1970/1980, onde um menino descobre o primeiro amor em plena ditadura de Pinochet e anos depois desvenda as relações familiares da menina que amava.

O caso é que não tinha, a rigor, uma melhor amiga, quer dizer, tinha muitas amigas, que sempre a procuravam em busca de conselhos, mas a confiança nunca era totalmente recíproca.


O formato começa a mudar em Meus documentos, onde são reunidos onze textos que podem ser classificados como romances curtos ou contos, todos de formação, abordando principalmente o amor.

O para tudo ocorre em Múltipla escolha, as perguntas e as múltiplas possibilidades de resposta são recheadas de ironia, cotidiano e relações pessoais, que abordam tanto passagens da história como o tempo presente, possibilitando ótimas reflexões.

Às vezes acho que sempre esteve largado ali, pensando. Mas talvez não pensasse em nada. Talvez só fechasse os olhos e recebesse o presente com calma ou resignação.


E o livro fecha de forma perfeita com os Contos dispersos, onde diferentes histórias podem facilmente envolver o leitor.


A escrita de Alejandro Zambra

Nascido em 1975 na cidade de Santiago, no Chile, o escritor Alejandro Zambra tem até o momento suas obras traduzidas para 20 idiomas, apresentando assim para o mundo a sua visão do Chile do passado e do presente.

E em Ficção 2006-2014 não é diferente. Nos seus diferentes textos, que misturam desde a escrita padrão, passado por inovações - pelo menos para mim, que não havia visto um autor utilizar o formato de questões de prova para gerar micro contos - ele explora a complexidade das relações humanas de uma forma acessível e também provocativas.

Nós, crianças, entendíamos subitamente que não éramos tão importantes. Que havia coisas insondáveis que não podíamos saber nem compreender.


O que dá um toque muito grande de realidade na sua ficção, principalmente quando explora o período da ditadura e seus efeitos, e o conservadorismo chileno que tornou a realidade de alguns direitos bastante recentes para sua população, um exemplo é a lei do divórcio, onde o Chile foi um dos últimos países ocidentais a implantar.

Tornando o Chile e seus personagens muitos próximos do leitor justamente pela sua escrita que é ao mesmo tempo simples, direta, pessoal e intimista. Tornando os seus textos um convite quase irresistível de se mergulhar e esquecer da rotina por algum tempo.


O que eu achei de Ficção 2006-2014

Eu conheci a escrita de Alejandro Zambra através do livro O poeta chileno, que me encantou e me divertiu em todas as suas páginas. O que fez a minha expectativa para o livro seguinte subir bastante a régua.

Começo confessando que tive sentimentos diversos durante a leitura deste livro que mistura romances curtos e contos.

Talvez eu possa colocar desta maneira: meu pai era um computador e minha mãe, uma máquina de escrever.


A razão para isso foi que eu achei as primeiras quatro histórias muito parecidas, a ponto de um dia mais sonolenta achar que a segunda história ainda era primeira, visto que até o nome dos personagens Julio e Julián eram semelhantes.

O perfil dos personagens principais: homem, escritor, confuso, atrapalhado se repetem, sendo o principal motivo do sentimento de déjà-vu durante parte da leitura.

Queixar-se era algo estúpido, precisávamos aguentar, sermos machos. Mas a ideia de ser macho era confusa: às vezes significava valentia, às vezes, indolência.


Em compensação, achei Múltipla Escolha sensacional, uma crítica à política, educação, relações pessoais, entre outros assuntos, onde não existe resposta certa. Com o toque certo de acidez, elas vão do bom humor a reflexão muito fácil, tornando a leitura ao mesmo tempo divertida e inteligente.

Também gostei muito dos Contos dispersos, quase todos rápidos e envolventes, abordando situações diversas, fechando com a pandemia que afetou a todos a tão pouco tempo e uma que está no nosso dia-a-dia chamada e tela.

E tampouco escreve cartas de amor, nunca o fez, talvez porque não saiba nada sobre o amor, e não goste do que sabe, pois o que sabe é monstruoso.


Para quem busca mulheres protagonistas, pode ter um certo estranhamento, já que a presença delas são como agentes de transformação do homem - no geral escritor - a ser acompanhado durante a narrativa.

Em relação ao Poeta Chileno, em Ficção 2006-2014 encontrei menos humor, e em alguns momentos senti falta de diversidade entre as narrativas, o que me fez pensar que teria sido mais interessante intercalar a leitura com outros livros, pelo menos dos quatro romances curtos, isso daria tempo de me desconectar da história anterior.

Acorda com um grito, um grito próprio. E embora saiba que não era apropriado gritar, recebe o abraço cansado de alguém e fica em silêncio.

Mas no geral gostei sim do livro, e o segundo livro me consolidou como fã do escritor Alejandro Zambra. Então sim, recomendou este livro que me levou até diferentes décadas do Chile e tem aumentado cada dia a minha vontade de conhecer este país pessoalmente.


Ficção 2006-2014
Alejandro Zambra
Tradução: Josely Vianna Baptista, José Geraldo Couto e Miguel Del Castillo
Companhia das Letras
559 páginas

quarta-feira, 14 de agosto de 2024

Primeiro sangue



Sinopse: Na primeira página deste livro encontramos um homem frente a frente a um pelotão de fuzilamento. Estamos no Congo, em 1964. Esse homem, sequestrado pelos rebeldes junto com outros mil e quinhentos belgas, é o jovem cônsul belga, em Stanleyville. Seu nome é Patrick Nothomb e ele é o pai da escritora. A partir dessa situação extrema, Amélie Nothomb reconstrói a vida de seu pai antes daquele momento. E ela faz isso dando-lhe voz. Assim, é o próprio Patrick que narra suas aventuras em primeira pessoa.

Recebi pela minha assinatura da TAG Curadoria no mês de maio/2024 a indicação da escritora e tradutora Adriana Lisboa a obra Primeiro sangue da autora belga Amélie Nothomb. O mimo foi um marcador de página em formato de gato.



Após quatro meses de discussões intermináveis para salvar a sua vida e de outros reféns, Patrick Nothomb escuta o seu nome e é levado para o pelotão de execução formado por doze pessoas. Da lembrança da inveja sentida de Dostoiévski por ter vivido experiência semelhante, naquele momento o que ele se agarra é ao fato de ainda estar vivo no tempo presente.

Conduzem-me diante do pelotão de execução. O tempo se alonga, cada segundo dura um século a mais que o precedente.


E o tempo presente dele iniciou a 28 anos atrás, quando ainda criança saiu da casa dos avós maternos, onde era extremamente mimado pela avó e solenemente ignorado pela mãe, para viver a experiência de conhecer a sua família paterna nas férias, incluindo tios que regulam de idade com ele e vivem de uma forma bem restrita. 

Mostrando ao leitor um menino doce e generoso, que encara tudo como uma grande aventura, conseguindo se adaptar a diferentes ambientes, personalidade que o levou a seguir a carreira de diplomata e ao ponto inicial do livro.


A escrita de Amélie Nothomb

Filha de diplomata, Amélie Nothomb é uma escritora belga que nasceu no Japão, estudou  Filologia Românica, que estuda a origem e evolução do Latim, e tem como marca registrada nos livros publicados anualmente ter toques de sua vida pessoal nas suas narrativas e as capas serem um close do seu rosto.

O que me impressiona nessas fotos é o ar de felicidade da minha mãe. Eu nunca a vi assim.


Primeiro sangue é narrado em primeira pessoa, pela visão do pai da autora, Patrick Nothomb, falecido em 2020. Patrick foi diplomata e ensaísta, e teve duas publicações: um sobre a sua carreira diplomática e outro um diário que conta justamente  sobre a tomada de reféns em Stanleyville.

Os capítulos são curtos, contando memórias da sua infância e adolescência, muitas mostrando não apenas um momento da sua história, mas também dando uma ideia aos leitores de como sua personalidade e carácter foram formados.

Ela desapareceu, deixando-me sozinho para encontrar aqueles que legalmente eram meus tios e tias e que acabaram por revelar-se uma horda de hunos.


Tornando Primeiro sangue uma bonita homenagem da filha para o pai, em uma escrita sensível e delicada, o que torna a leitura envolvente e fluída e nos faz pensar em que tipo de homem ele era.


O que eu achei de Primeiro Sangue

Na minha humilde opinião Primeiro sangue é, até agora, o melhor livro enviado pela TAG Curadoria em 2024. É um livro delicado, sensível, com uma narrativa que desperta a curiosidade em ler mais uma página, que por consequência vira mais um capítulo.

Eu experimentava uma profunda admiração por essas crianças que suportavam condições de existências tão especiais.


Adorei como o personagem encara as diferenças familiares, e nem mesmo a fome ou o frio o afastam dos raros convívios com os tios que regulam de idade com ele. Apesar de mimado pela avó materna, ele não é egoísta nem arrogante, muito pelo contrário, e não apenas reparte o que leva para suas estadias na casa da família paterna com todas as outras crianças, como pede para a avó materna preparar sua mala pensando nelas.

E são justamente estes dois mundos distintos que contribuem para que ele se torne uma pessoa empático e lhe dão instinto de sobrevivência para o mundo adulto, algo essencial no momento em que se torna não apenas refém, mas um negociador para tentar garantir a vida dos seus compatriotas.

Do que eu tinha conhecido em seis anos e meio de existência, essas férias de Natal eram o que mais se parecia com a felicidade.


De bônus para quem embarca nesta aventura, tem a história de amor de Patrick e Danièle, que é uma graça e deixa o coração quentinho.

Eu adorei o livro e super indico, e se você curte livros que misturam memórias, história e relações familiares, corre o risco de se encantar também.


Primeiro sangue
Premier sang
Amélie Nothomb
Tradução: Daniel Moreira
TAG - Paris de Histórias
2024 - 151 páginas
Publicado originalmente em 2023


segunda-feira, 5 de agosto de 2024

Água Funda

Sinopse: Entrelaçando diferentes tempos e personagens, inserido no universo de uma comunidade rural na Serra da Mantiqueira, Ruth Guimarães construiu uma prosa ágil e fluída, permeada de ditos populares e causos marcados pela superstição e pelo fatalismo, que antecipa em certos aspectos o realismo mágico de Juan Rulfo e Gabriel García Márquez. É o caso das histórias de Sinhá Carolina, dona da Fazenda Nossa Senhora dos Olhos d'Água, e do casal Joca e Curiango, trabalhadores locais, num arco temporal que vai da época da escravização até os anos 1930. Como afirma o narrador do livro: "A gente passa nesta vida como canoa em água funda. Passa. A água bole um pouco. E depois não fica mais nada".

No mês de abril/2024 recebi da minha assinatura da TAG Curadoria a indicação do rapper Emicida o livro Água Funda da escritora paulista Ruth Guimarães. O mimo foi um tarô literário.

Logo de início o leitor é convidado a saber como era antigamente, o que ficou igual, mas principalmente o que era diferente, e assim a primeira personagem da narrativa aparece: Sinhá Carolina.

Ter dor de barriga é uma coisa. Pensar na dor de barriga alheia é outra coisa muito diferente. Sempre parece que a dos outros dói menos.


Com a Sinhá vem o tempo da escravatura e as relações hipócritas e exploradoras dos que comandavam as terras, pois sustentar uma sociedade mimada e egoísta exige muito suor e esforço dos que devem servir.

Mas com a fazenda virando fábrica, vamos conhecer a história de Joca e da bonita Curiango, que com eles trazem as mudanças ao longo do tempo e diferentes personagens que vão completando não apenas a vida nesta sociedade, como também as diferenças sociais e crenças populares, que tão um toque de fantasia na narrativa.


A escrita de Ruth Guimarães

A escritora brasileira Ruth Guimarães nasceu em Cachoeira Paulista em junho de 1920 e nos deixou em maio de 2014. Publicou 51 livros entre contos, crônicas, traduções, ensaios folclóricos e romances, entre este último Água funda.

Em Água funda ela utiliza a narrativa em terceira pessoa. A escritora paulista nos convida a entrar em um bate-papo para compartilhar vários acontecimentos que iniciam em Vale da Paraíba, local que já proporcionou todos os desejos de uma sinhá mimada até um solo que não produz mais nada e gera decadência econômica para os que ficaram.

Os olhos deles tinham outro poder, que os de nós, pecadores não tinham. Viam mais. Criança e cachorro nunca se enganam.


O livro pulicado em 1946 tem uma escrita fluída, que entre fatos concretos e crenças dos que ali vivem, conseguem colocar o leitor em dia com os principais causos, casos e acontecimentos da comunidade local. 

Mas é também uma leitura que exige atenção, pois como em uma boa conversa em que se troca fofocas da vizinhança, os assuntos vão e voltam, o que pode provocar confusão e dúvidas em alguns momentos.

Porque o homem, por mais ignorante que seja, por mais cego, por mais bruto, gosta de ser tratado como gente.


Um livro que mistura ficção e um pouco da própria história do Brasil, mais especificamente do estado de São Paulo, ao mesmo tempo que nos apresenta uma escritora brasileira que talvez passe batido por vários leitores.


O que eu achei de Água funda

A leitura me despertou lembranças de uma querida vizinha de uma das minhas moradias anteriores que estava sempre por dentro das novidades do bairro. Isto se deve ao fato que durante a leitura inteira eu imaginei várias senhoras sentadas ao redor de uma fogueira ou apoiadas nas janelas de suas casas, todas bastante próximas, lembrando de fatos ocorridos na sua volta, com mais ênfase na vida dos personagens cujo o destino não foi tão afortunado.

Pois durante a leitura não existe um aprofundamento em relação ao envolvidos, como brincou a minha mãe: a narrativa em alguns momentos lembra mais uma água rasa.

Já morreu e isso não teve importância. Quem morre não faz falta, porque quem fica se arranja.


Mas ao mesmo tempo, até pela época em que foi escrita, é interessante a abordagem utilizada em relação as mudanças nas formas de se trabalhar, com direito a golpes que continuam a serem aplicados nos dias atuais em trabalhadores de regiões mais afastadas que recebem ofertas tentadoras, a questão das doenças mentais - outro assunto discutido e estudado nos dias de hoje -, além do declínio dos donos de escravos e as diferenças sociais que gritam com mais ou menos força, variando conforme ele se afastam da sua comunidade.

Então acredito que apesar do ar de conversa de vizinhança não aparentar ser tão profunda, a comunidade deste vale pode sim trazer excelentes reflexões não só sobre o passado, mas também sobre o presente, já que em muitas situações não há muitas evoluções nos dias de hoje.

As mágoas velhas, que a gente guardou, voltam e pegam a latejar de novo, nessas noites meio claras, meio escuras, de céu limpo.


No geral eu gostei de Água funda, a forma como a narrativa é ambientada me transportou para a roda de conversa, estimulou o meu lado curioso, e me fez ter interesse em suas crenças, estimulando uma discussão entre o meu lado que gosta de literatura fantástica e o meu lado mais cético.

Ficando a dica para quem gosta de livros que contam um pouco da história e cultura brasileira, quer ler mais livros escritos por mulheres e naturalmente, para quem simplesmente quer ler.


Água funda
Ruth Guimarães
TAG - Editora 34
2024 - 199 páginas
Publicado originalmente em 1946