sexta-feira, 16 de fevereiro de 2024

Em algum lugar lá fora


Sinopse: A história se passa em uma região não especificada no sul dos Estados Unidos, por volta dos anos 1850, na fazenda Placid Hall. Nela, os escravizados — ou “Sequestrados”, como se autodenominam — são submetidos aos caprichos de um tirânico e excêntrico captor e nunca sabem o que pode lhes ocorrer além do trabalho físico desumano de todos os dias: um castigo brutal ou a venda inesperada de um ente querido. Porém, o que mais fere William, Cato, Margaret, Pandora e o Pequeno Zander é a falsa crença de que são incapazes de amar. Ainda que tenham aprendido o idioma e a doutrina religiosa de seus captores — chamados por eles de “Ladrões” —, possuem linguagem e rituais próprios e desejam, a todo instante, estar “em algum lugar lá fora”, uma realidade distinta daquela em que vivem. Até que o pastor Ramson, homem negro liberto com um passado misterioso, começa a incutir neles ideias de liberdade.

Em Novembro/2023 recebi da minha assinatura da TAG Curadoria o romance norte-americano Em algum lá fora do escritor Jabari Asim. A curadora foi da escritora e historiadora pernambucana Micheliny Verunschk. E o mimo foi um chaveiro literário.

A história começa quando William, aos quatorze anos, assiste uma das piores cenas que um ser humano pode presenciar: vinte crianças negras mortas, esquecidas em um barracão de madeira após a prisão de seu sequestrador. Para em seguida ele ser vendido a um fazendeiro dono de dez mil acres de terra. Seu novo lar, Placid Hall, era o centro de pesquisa deste homem branco sobre o comportamento de seus sequestrados.

Nossas privações eram muitas, e, no entanto, havia algum consolo em saber que existiam outros seres no mundo - ratos, digamos, ou cobras - que sofriam ainda mais.


Em Placid Hall William conhece Cato, que já nasceu escravizado em um lugar onde a senhora era gentil e o ensinou a ler, e até hoje recita as regras de um livro chamado As regras da civilidade para se acalmar. Ele e Willian dividem sua cabana com Zander, um menino sonhador que está nos primeiros anos da adolescência, tem uma grande fé e é sempre muito ativo.

As mulheres são representadas por Margaret, companheira de Willian, que não deseja que seus filhos nasçam escravos e vive a pressão do fazendeiro de engravidar. E por sua amiga Pandora, que já passou por várias humilhações nas mãos da senhora de Placid Hall, ao qual chama de Guincho da Coruja.

Uma língua que que sabe parar quieta é a base de uma cabeça sábia.


Os cinco conhecem Ransom, um homem de aparência calma e confiável que já foi escravo e hoje realiza a função de pastor itinerante pelas diferentes fazendas. Mas muito mais do que palavras religiosas, ele mantém vivo os próprios rituais africanos e planta nos corações que encontra o anseio por liberdade quando os ladrões não estão olhando.


A escrita de Jabari Asim

O escritor Jabari Asim divide a sua narrativa em nove partes, cujos títulos podem dar uma pista ao leitor do que irá encontrar nas páginas seguintes. Com raras exceções, os capítulos levam o nome do personagem que irá relatar os fatos a seguirem, utilizando a narrativa em primeira pessoa. A narrativa em terceira pessoa só ocorre nos capítulos sem nome.

Como base está a própria história da escravidão, com suas dores e injustiças, a cultura africana, com suas formas de fé, e o realismo mágico, que dá o toque de esperança em meio a tensão.

Os bebês que por milagre sobreviviam ao inverno eram mandados para os campos para trabalhar como espantalhos humanos assim que aprendiam a andar.


Os personagens, em um retrato fiel aos seres humanos, possuem origens, histórias e personalidades bem diferentes, embora o fazendeiro não se dê o trabalho de observar e muito menos anotar. Aliás, as observações feitas pelo pseudo pesquisador dão uma ideia para quem não é descendente de escravos o tipo de mentalidade que os escravagistas tinham para acreditar terem direito de subjugar um outro ser humano e assim se sentirem livres para praticarem atos desumanos.

Outro fato curioso são os termos utilizados pelo autor, aqui não temos o uso de termos como proprietário ou dono, mas ladrões, e o termo escravizado por sequestrado. Lembrando que sim, que foram ladrões que entraram dentro do território do continente africano e sequestraram vidas humanas de suas aldeias, famílias e amores.

Não existe deus nenhum, e as únicas coisas em que dá para acreditar são a brasa do verão, o gelo do inverno e a força das minhas mãos.


Tudo em uma escrita forte, que transfere o leitor para a fazenda e o faz sentir junto com os personagens cada situação, suas tristezas, pequenas alegrias, injustiças e sim, esperanças.


O que eu achei de Em algum lugar lá fora

Gostei muito da divisão dos capítulos, que são curtos e intensos. Também gostei das diferentes visões das situações, o fato de cada personagem ter suas características tão definidas me cativaram como leitora, tornando fácil imaginar o dia-a-dia na fazenda, sofrer com as dores de uma violência sem justificativa e entender as dúvidas e certezas em relação a fé.

O toque fantástico amplia as cenas, lembrando as histórias que foram passadas oralmente, mas aqui vividas por completo. Tudo complementado pelo respeito aos ancestrais, a mistura de coragem e medo, gerando uma contrapartida as palavras pronunciadas pelos aqui chamados ladrões, principalmente o dono da fazenda, cujos diálogos beiram o absurdo.

Nós nos movíamos como se estivéssemos perdidos em sonhos; comíamos sem sentir sabor, dormíamos sem descansar, ouvíamos sem escutar.


A leitura também me fez recordar dois livros: The Underground Railroad - que trata da fuga de Cora, uma escrava presa em uma plantação de algodão na Geórgia - e A Dança Da Água - que também mistura o desejo de liberdade de escravos na Virgínia com realismo fantástico.

Um livro que eu gostei e me tocou, e assim deixo aqui recomendado para quem se interessa por história, pelo período da escravidão, literatura fantástica ou simplesmente gosta de ler.


Em algum lugar lá fora
Yonder
Jabari Asim
Tradução: Rogerio W. Galindo
TAG - Instante
2023 - 255 páginas
Primeira publicação em 2022

Post não patrocinado, assinatura paga pela autora do post.

Nenhum comentário:

Postar um comentário